REFLEXÕES DE UM “SALÁRIO MÍNIMO”

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano V, edição nº.218, de 10 a 16 de agosto de 1981.




REFLEXÕES DE UM “SALÁRIO MÍNIMO”

NELSON LORENA


“Ah! Se eu fosse um político em evidência! Afinal de contas, por que não o poderia ser?”, argumentava comigo num desabafo informal, o nosso amigo Zé da Maloca. “Sei ler, escrever, fazer as quatro operações, dizer as coisas que sinto, que observo, sou brasileiro... A profissão, já por si, é a única que para sua admissão não exige diplomas, concursos, títulos, nem mesmo idoneidade moral, embora muitos os possuam. Fiquei com inveja dos felizardos que foram à Alemanha, ao Canadá, à Espanha, de chapéu nas mãos, em busca de recursos financeiros e outros, a fim de minorar a situação de um povo que passa fome, deitado eternamente em berço esplêndido, sob cujo acolchoado, a bauxita, o ouro, o manganês, abundam em milhares de toneladas e o pedágio,as loterias, a exploração do álcool e do fumo rendem anualmente aos cofres da nação, bilhões de cruzeiros! Alcançando os objetivos,e se sábia for a aplicação, estaremos bem para o futuro ; mas se o inverso se der, restarão as recordações de um belíssimo passeio e também da fantástica capacidade de recuperação de um povo, como o alemão, ontem esmagado por uma guerra sangrenta, a cujas portas lhes batem hoje os vencedores, pedindo-lhes ajuda para sua deteriorada economia! Essa capacidade tem seu fundamento em três fatores: Cultura, Caráter e Amor próprio, que não se emprestam e nem se vendem”. Meu amigo fez uma pequena pausa e mudando de assunto, recomeçou: “Como você sabe, ontem foi dia do aniversário da minha “patroa”. Gastei minhas economias de longos meses para festejá-lo; ela também participa de nossas privações. Desci à cidade, comprei um frango de quilo e meio, batatas, uma dúzia de bananas para a criançada, um litro de leite, pão e uma garrafa de vinho. Queria que ela nos preparasse uma maionese, mas o dinheiro não deu; foi uma pena pois eu adoro-a. É uma dureza a vida de um “salário mínimo” com mulher e quatro filhos! À noite, deitei-me cedo. Muito frio, vento gelado que soprava pelos desvãos das telhas fustigava as crianças já acomodadas. Minha resignada mulher ficou dando um jeito nas “tranqueiras” da casa e da cozinha. E nas asas de Morfeu fui levado ao País do Sono, pelo filho da Noite e dos Sonhos... A patroa, estranhamente, manuseava um livro de receitas; parecia querer fazer-me uma surpresa. Sobre a mesa da cozinha, carne desfiada de um frango, meio quilo de vagem, seis batatas cozidas, seis cenouras, sal seis ovos e mostarda. Era a “maionese”, sem dúvida. Fiquei intrigado; como conseguira comprar tudo? Onde conseguira tanto dinheiro, correspondente a dois dias de minha luta na picareta? Indagar o “como e por que” não tinha razão de ser, se minha vontade iria ser satisfeita. Tudo pronto, estende um paninho sobre a mesa, traz os pratos e colheres e grita: “Zé, acorda, ta na hora de trabalhar, são seis horas, o café tá pronto; você esqueceu que hoje é segunda-feira”?” A “Via Crucis” do “salário mínimo” recomeça...
Os “pais da Pátria”, dormem e sonham ainda com os festivais teatrais de Montreal, com a suntuosidade do Parlamento de Otawa, o castelo de Frontenac, os passeios nas tardes quentes às margens do Reno, a ponte de Brademburgo, a visita ao Museu do Prado, o “trottoir” pela Calle Alcalá, pela Puerta del Sol..., mas minhas crianças, como sempre o fazem às segundas-feiras, já foram aos fundos do mercado, arranjar vasculhando os latões de lixo e refugos, alguma coisa para o almoço.



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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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