O SUPÉRFLUO E O NECESSÁRIO

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano V, edição nº.236, de 14 a 25 de dezembro de 1981.




O SUPÉRFLUO E O NECESSÁRIO

NELSON LORENA



Vez por outra, neste amálgama de problemas contraditórios, desilusões, fracassos que fazem com que a vida mereça, algumas vezes, meu desprezo, recorro-me à claridade dos Evangelhos de Cristo como fonte saciadora de alento, novas energias e calor para meu espírito desfalecido. Abri por acaso o Evangelho, segundo Mateus: deparei com a “tentação” de Jesus. “Faze com que esta pedra se transforme em pão”, disse-lhe o demônio. Do amontoado de absurdos, consideremos o aspecto físico e material da narrativa, a moral se salva, nos mostrando as tentações a que estamos sujeitos na posse dos bens transitórios da existência. Foi-me também possível tirar outras conclusões necessárias ao arrazoado a que me proponho. Há vários meses, os jornais trouxeram-nos a notícia do roubo da coroa de ouro da Virgem, de uma das Igrejas de Florença, orçada em um milhão de cruzeiros. Agora nos vem a notícia de que objetos sacros de grande valor histórico e material, no valor de dois milhões de cruzeiros, foram roubados do Museu Sacro de Parati. No meu arquivo, encontrei uma carta da Itália, datada de agosto de 1944, enviada por um sobrinho meu, herói da FEB, cachoeirense que entre outras coisas, me dizia: “...entre as cidades que visitei, duas me impressionaram por demais: Nápoles e Pompéia. A primeira, maravilhosas paisagens de uma beleza sem par; a segunda, monumentos históricos de uma riqueza incalculável. Vi uma das igrejas de Pompéia, uma imagem de Nossa Senhora, em cuja coroa de ouro havia duzentos e setenta brilhantes!...” Há poucos dias, numa viagem de ônibus entabulei diálogo com uma senhora, cujo semblante denotava sofrimento e maus tratos. Disse-me que, uma noite sua filhinha dormiu chorando de fome. Em seu desespero rogou ao Céu, misericórdia, entre lágrimas; durante o sono sonhou que alguém desceu do altar, debruçou sobre ela, tirou da cabeça uma coroa, entregou-a dizendo-lhe: “Transforme-a em pão, sua filha não chorará mais”. De fato, houve uma mudança em nossa casa daí para cá, concluiu a senhora. Nenhum ser humano, santificado pelos nobres sentimentos que nos devem considerar irmãos, sentir-se-á feliz em ostentar na fronte uma coroa de ouro e, ao seu redor, a fome e a desolação. É uma ofensa à dignidade de um Santo, fazê-lo ostentar em sua cabeça o ouro, talvez até conseguido com o sacrifício dos pobres quando, aos seus pés, criaturas famintas, sequiosas de pão, se ajoelham implorando a misericórdia que raramente vem. A voz dos condutores cristãos, reboa em advertências piedosas, implorando a aproximação dos ricos aos pobres, no sentido de tornar menos miseráveis as condições em que vivem os deserdados da sorte. A ação deveria concretizar a palavra, transformando-se todo luxo, toda opulência, toda prata, todo ouro, todo supérfluo que contradiz a simplicidade Daquele que “não possuía um lugar para repousar a cabeça”, para que aos arautos da Fé não sejam tentados pelo demônio e, paradoxalmente, convidados a transformar em pão as pedras douradas dos altares.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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