”PRESENTE”: RESPONDEM OS MORTOS

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, escritas entre 1977 e 1990. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.503, de 13 a 19 de julho de 1987.



”PRESENTE”: RESPONDEM OS MORTOS

NELSON LORENA


As múltiplas atividades do homem, mentais ou físicas que sejam, sofrem um decréscimo gradativo à medida que seus passos se tornam cadenciados, lentos e as primeiras sombras da noite eterna esboçam o crepúsculo no horizonte da longa caminhada da vida. Nessas condições, o caminheiro, cansado, extenuado, desiludido de si mesmo, pelo Mal que fez, e não o deveria, pelo Bem que deveria, e não o fez, arrepende-se e quer recomeçar a jornada em passos mais seguros. O arrependimento é, na Fé, a força emanada do Alto que nos vem pela voz de amigos, que nos precederam ao ingressar na Vida Maior.

Retirados estávamos das lides jornalísticas, após mais de meio século de atividades. O afastamento de nosso convívio, de nosso prezado amigo João Alter, por seu falecimento, obriga-nos a realçar as qualidades de probo, honesto, excelente chefe de família, sobretudo amigo, falava muito bem a língua portuguesa e assim a escrevia, apesar de sua origem judaica e natural da Bessarábia. Humorista fino, seu bom humor a todos contagiava. Em oportuna relembrança, recontaremos uma passagem reveladora dessa característica do nosso amigo.

Num domingo, um grupo de aposentados achava-se reunido na praça, tal como em um encontro ecumênico. Interrogávamos, uns aos outros, sobre as origens do dízimo. O protestante, sempre mais versado sobre nos textos bíblicos, foi logo citando o Deuteronômio XIV, 22,27 e dizendo: “Em local consagrado a Jeová, realizava-se um banquete. De três em três anos separava-se, de tudo quanto nascesse durante esse tempo, o que deveria ser dado ao estrangeiro, ao órfão, à viúva, ao pobre, ao levita. Com a destruição do Templo de Salomão, por Nabucodonosor, Josias, o Rei, mandou que os dízimos recolhidos fossem distribuídos aos operários que trabalhavam na reconstrução do Templo e, posteriormente, aos auxiliares da Igreja.” Interrogado, o católico Zé Teodoro nos diz: “No cristianismo primitivo, não se cobravam os dízimos. Estes eram substituídos por ofertas, espontâneas e variáveis, de moedas depositadas no gazofilácio e que eram destinadas aos órfãos, aos pobres e viúvas carentes e ao sustento dos sacerdotes e auxiliares. Nos tempos atuais há uma contribuição voluntária, sem caráter decimal, aplicada nas obras pias, na conservação da Igreja e na manutenção do clero”. Quisemos ouvir também a opinião do judeu, João Alter, que assim falou: “O mundo está passando por uma transformação que assusta e apavora. Os hábitos, os costumes, a corrupção, a imoralidade, as mais variadas e contraditórias concepções da vida se acumulam e se entrechocam, modificando a estrutura política, social e religiosa.” E, esboçando um ar malicioso e sarcástico todo seu, continuou: “Senhores, nasci na Bessarábia, região da Rússia, mas sou judeu. A questão da aplicação do dízimo difere muito do Ocidente. É muito mais prática. Lá, o protestante faz um círculo e atira os dízimos pra cima. O que cai dentro do circulo, é de Deus, o que cai fora, é do Pastor. O católico traça uma reta e joga os dízimos para cima. O que cai do lado direito, é de Deus, o que cai à esquerda, é do padre. Nós, judeus, não usamos nem círculos e nem retas, pois, tudo pertence a Deus, que dá ou tira quando Lhe apraz. Jogamos todos os dízimos para cima. O que Deus pega, é Dele, o que cai no chão, é do rabino”.

Em síntese, eis a personalidade marcante e festiva do grande amigo que se foi. “Muita alegria”, sempre me desejou em sua língua, que aprendemos e que lhe devolvemos, como gostava: “Lechune Toyve” , João Alter, onde estiveres.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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