POR CAUSA DE UMA REMELA


 LITERATURA DE NELSON LORENA

Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.






A literatura de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentos artigos sobre história, ciências, humor, crônicas locais, crítica, política e religião, que publicou como cronista do Jornal “O Cachoeirense”. Ao professor e jornalista José Maurício do Prado, o nosso agradecimento pelo acesso aos originais.



Jornal “O Cachoeirense” Ano II, Edição nº. 60, 10 a 16 de julho de 1978.

POR CAUSA DE UMA REMELA
Breve conto crítico

NELSON LORENA


Talvez que o paraíso terrestre, ali houvesse sido plantado! O lago Tiberíades em cujas imediações situavam-se Cafarnaum, Bethzaida, Corazim e Tiberíades, era o recanto mais delicioso do mundo e um dos preferidos por Jesus, em suas pregações. Seu povo, afável, pacífico, trabalhador, bondoso por índole, vivia irmanado por um sentimento fora do comum. A pesca era seu principal meio de subsistência. O lago de Tiberíades é um dos lugares mais abundantes em peixes do mundo. Em suas imediações viviam Abdias, Joana, sua esposa, e seus filhos Abigail e Joel. Fieis ao judaísmo era o maior desejo de Abdias, ver o filho algum dia como sacerdote do templo. Sua família, de pescadores que era, possuía vida cômoda e de relativo conforto, o que propiciava a Joel, tempo e horas de dedicação ao estudo das leis e da cultura que o sacerdócio exigia. Debaixo daquele céu, daquela cúpula azul de profundeza infinita, os anos velozes passavam, como tudo o que é bom na vida. Joel e Abigail são jovens. Abigail, de rara formosura, parecia uma nova Frinéia a inspirar novos Praxíteles. Amava um jovem de Corazim, em devaneios com o qual, construíra os castelos naturais dos que se amam. O espetáculo do luar que o Tiberíades oferece é qualquer coisa que transcende o que de mais belo poderiam nossos olhos ver. Em todas essas noites os namorados iam à praia e sem se demorarem demasiado, voltavam ao lar. Numa daquelas noites, enlevados com a beleza da face do Céu, a chama do suave e forte contacto com a natureza, os queimou; Abigail retorna ao lar, maculada. E, se o Bem anda, a Maledicência voa; transpondo em poucos dias as vinte e duas léguas que separam Cafarnaum de Jerusalém. “A palavra de Deus foi insultada!” O Sinédrio reunido, assim o delibera. Considera a linhagem da família e decreta seja lançada às chamas, como ordena Jeová em tais casos. De maneira estranha a Jeová, Joana, como qualquer mãe o faria, perdoou a filha, mas não resistindo à dor, sucumbe dias após. Abdias, dominado pela dor, pelo desespero, pela solidão num lar vazio, amparava-se em Joel, único consolo na tragédia que o rigor impiedoso da lei lhe impôs. Ante a abulia do pai, Joel toma a direção do lar. Todos os dias, lança mão das redes, dos cestos e demanda ao lago para a pesca. Certa vez em que soprava um forte vento, ao arrastar a rede, tropeça e cai, ferindo-se na fronte, comprometendo os olhos que, dia após dia, se cobrem de um humor viscoso, remeloso. Isso contudo, não o impedia de se ilustrar no conhecimento das leis, para cujo mister, sonhava seu velho pai, que agora lhe dizia: “Filho, não quero fechar os olhos, antes do grande dia de sua consagração; neste dia, morrerei tranqüilo.” Estamos nas vésperas do grande dia. Ajaezam dois camelos, providenciam farta alimentação e se põem a caminho de Jerusalém, em longa jornada. Ao passar por Nazareth, onde nasceu Jesus, ouvem falar no filho do Carpinteiro, como novo Messias, mas sem lhe dar crédito. Cinco dias após a partida, chegaram a Jerusalém, entrando pelo Pórtico de Salomão; oraram no Templo e se dirigiram em seguida à Câmara do Concílio, onde os sacerdotes julgariam o jovem candidato à nobre missão. O esplendor, o luxo, a arte, tudo ao máximo que se poderia conceber, ali estava aos olhos do pai e do filho. O rosto de Abdias, até então contrafeito, transmuda-se retratando a imensa alegria na antevisão do seu maior sonho, a consagração do filho no sacerdócio. Mas o abismo continua a atrair o abismo. O Príncipe dos sacerdotes, piedosamente revela ao pai, a impossibilidade da consagração do filho, considerando a lei que regula o iniciado. “Com o coração sangrando e a alma ferida, belo moço e extremado pai, vou ler-lhes a lei de Jeová, que regula o caso: Não chegará ao Ministério qualquer homem que seja cego, coxo, se de nariz pequeno ou grande, se tiver pé quebrado ou mão, se for corcovado, se tiver belida nos olhos, se tiver remela, sarna, impingem ou quebradura”. A única razão da vida de Abdias, deixou de existir. Como um cadáver, empalideceu apoiando-se numa das colunas. Parecia que Prometeu, houvesse transformado o fogo do Céu, em raios sobre sua cabeça. Como um espectro, sobre o dorso do camelo, retornou com Joel a Cafarnaum. A solidão do lar, o aniquilava cada vez mais. Joel volta à tarefa diária da pesca. Um barco se aproxima da praia e ali estava Jesus trazido por Pedro. Uma multidão o aguardava. Joel ouve a palavra do moço de Nazareth e de regresso ao lar, relata ao pai o que ouvira. Os ecos da pregação foram chamas a iluminar aquele lar sombrio e encher de novo alento os corações feridos. Diariamente à sua porta passavam cameleiros, gente do povo, miseráveis ou não, pastores, todos atraídos pelo Verbo promissor do Cristo. Abdias e Joel a eles se reúnem. O Tiberíades estava mais belo do que nunca. Jesus, na proa do barco, falava à multidão. Queriam tocá-lo, senti-lo de perto. O Mestre desce à praia, Abdias e Joel se aproximam. Estranho magnetismo fulgurava dos olhos do Messias: sentiram o perfume daquela boca que se abria para anunciar a universal consolação. Pai e filho, curvam-se e conseguem tocar as fimbrias do manto sagrado. Sentem que uma virtude escapa do Cristo! Os olhos de Joel se tornam mais brilhantes que nunca; um desejo ardente de viver, lutar e amar invade a alma de Abdias. Um milagre operou-se enquanto Jesus dizia. “Deus é amor.” “Amai o vosso próprio inimigo.” "A lei e os profetas vieram até João. Daí para cá, o Evangelho do Reino é anunciado." Morreram para Jeová, mas nasceram para o Cristo e não mais O abandonaram. A Paz e a Alegria nascem como a primeira flor, perfumadas com a pregação suave e doce, cheia da Natureza e do aroma dos campos.


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