LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.
Com sua característica fertilidade, Nelson Lorena escreveu, em forma de crônicas, sobre história, ciências, retratos do cotidiano, crítica, política e religião, entre outros temas. Do seu acervo literário produzido entre 1977 e 1990, a matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano I, edição nº. 08 de 16 a 22 de Julho de 1979.
A VIDA A QUALQUER PREÇO
NELSON LORENA
Assistimos todos os dias fatos que, comparados embora em sua diversidade, nos levam a conclusões filosóficas, de que, somente a dor, a angústia, o desespero pela sobrevivência, o sofrimento coletivo, são capazes de despertar em nós o sentimento do mais puro Amor, que se evola, como a essência de um perfume em vidro aberto. Quando meninos, lemos “Uma aventura no pólo” de Júlio Verne, em que alguns exploradores, procurando caça, resolveram perseguir e matar um urso, que ao longe divisaram. Quando ao alcance de suas miras, o bloco de “iceberg” se biparte e, arrastado pelas correntes marítimas, desliza mar afora; à medida que se afastava do círculo polar, a temperatura da água aumentava, aumentando também o degelo. O perigo torna-se comum, tanto ao perseguido como aos seus perseguidores; ante a sobrevivência recíproca ameaçada, o perigoso e destemido animal esqueceu os caçadores e estes, à medida que o espaço se estreitava, sentiam despertar-lhes o sentimento de solidariedade que irmana homens e feras, quando o direito de viver se pronuncia como o mais sagrado imperativo da existência; e, quando o urso viu terra, deu tremendo urro e se atirou ao mar. Logo após, pescadores recolhem e põem a salvo os exploradores. No incêndio do Joelma, foram encontrados em ambiente reduzido, diversos corpos de homens e mulheres sufocados e mortos pela fumaça, abraçados no infernal suplício. Abraço fraterno que as alegrias da existência e a vida de relações não conheceram, mas que os horrores da morte exigiram. Os adversários se confraternizam, as malquerenças se dissipam, quando o prolongamento da vida assim exige. Na Holanda, quando um dique ameaça se romper, pondo em perigo a vida de seus habitantes; os sinos dão o alarme, o povo se reúne, forma um só bloco e em massa compacta detem a avalanche do mar, enquanto outros reparam a brecha aberta, evitando maiores rompimentos. Se a fome nos ameaça, se a precariedade de saúde põe em perigo nossa sobrevivência, até os escrúpulos de consciência e o próprio pudor, em seu recato, são olvidados. A lei absolve aquele que na indigência rouba para saciar a fome, a nudez deixa de ser indecorosa quando a finalidade, em sua nobreza, é o direito de viver. A honestidade, o pudor, retomam seus lugares em nossa personalidade quando, para a sobrevivência, não mais seja preciso o sacrifício dessas virtudes. A propósito, nos contaram um fato que de certa forma justifica nosso ponto de vista. Em certo hospital, um octogenário, em estado grave, recebia na radial a aplicação de soro quando, por motivos que foram explicados, escapa-se o tubo condutor, ficando a agulha, sem que o doente se apercebesse, eliminando sangue, que manchou as vestes íntimas do enfermo. Verificado o incidente pelas enfermeiras, foi um corre-corre para paralisar o fluxo sanguíneo, acalmar o doente e libertá-lo das vestes empapadas. O octogenário, ante a impressão que o fim de sua vida havia chegado, esqueceu todo o pudor natural e deixou que as enfermeiras o libertassem daquela situação incômoda, com a troca de roupas, limpeza, talco, etc., como lhe fazia sua mãe há oitenta anos. Animado pelas moças que, carinhosamente lhe atenderam, afastadas as impressões desagradáveis e quase trágicas, seguro de que o perigo se afastara, recuperou a calma, a tranqüilidade e todo seu pudor retomou lugar. E olhando para as enfermeiras, em voz fraca e quase feminina diz-lhes: “Agora bôceis faiz o favoire; saiam todas que eu quero fazeire xixi!”
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