LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.
O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano I, edição nº.118, de 27 de agosto a 2 de setembro de 1979.
AMIGOS CACHORROS E CACHORROS AMIGOS
NELSON LORENA
A piedade é uma virtude que não possui dimensão. Nós, os humanos, a possuímos desde a fase rudimentar, até à sua maior expressão que se revela de conformidade com o grau de perfectibilidade que o espírito se situa. Sabemos de criaturas que se santificaram pela sublimação dessa virtude, manifestada até nos seres inferiores da criação. São Francisco de Assis, é bem o vulto que obteve a auréola de santidade, pela piedade demonstrada ao inimigo, ao salteador, ao escravo, ao judeu, aos animais inferiores e as aves. Já fomos testemunhas do desespero que se apodera de certas crianças, quando o laçador, leva na carrocinha seu cachorro de estimação. Mas, qual de nós, não adora seu cão? Existe melhor e mais fiel amigo do homem? Se enfermo, tudo não faríamos para salvá-lo? Temos um amigo, que, médico, passou uma noite inteira lutando para salvar seu cão amigo, envenenado que havia sido por almas brutalizadas, restituindo-se a vida e uma amizade prestes a se perder, isto com a mesma dedicação como, se aos seus doentes habituais. Já possuímos dezoito cachorros, e a todos proporcionamos sepulturas e caixões funerários como se humanos fossem. Sensibilidade doentia? Acreditamos que não. Quem não sente afeição pelos pássaros caseiros e animais domésticos que participam de suas alegrias, não a terá pelo seu semelhante. A longa caminhada pelo tabagismo, pelo o alcoolismo, pelos tóxicos enfim, começa com certa repugnância, que a continuidade do hábito elimina, criando-se o vício. Fazer o bem, afeiçoar-se, ser piedoso, é uma questão de exercício, de um hábito também, que eleva o caráter do homem sem a degeneração física e moral que os maus vícios geram. Em nossa mocidade, há cinqüenta e cinco anos, tivemos uma afecção pulmonar, que nos obrigou a procurar na Rua Silveira Martins, no Rio, um médico de nossa estima e confiança. Após exames criteriosamente feitos, opinou pela bacilose precoce. Com tratamento e vontade de curarmos, foi ela, meses após, superada. Enquanto conversávamos, abre-se a porta do consultório que é invadido pelo seu cão, procurando como todos o fazem o carinho e o agrado do dono. Exaltamos reciprocamente a lealdade desse animal, como o melhor amigo do homem; da sua fidelidade, tão pródiga em sua raça e tão escassa nos homens; da sua dedicação gratuita, sem a exigência de compensações, e a lealdade, não raras vezes calculada, dos “amigos”. Contou-nos que aquele seu amigo foi por ele operado, após ter o ventre estourado sob as rodas de um automóvel, isto, na própria mesa em que nos examinou, porque a gravidade do acidente não permitia delongas, e a vida de seu cachorro lhe era cara por demais. Perguntamos-lhe se era veterinário; havendo ele respondido que no curso de cirurgia prática, era comum operar cães; ademais, venha o sofrimento de onde vier, mesmo do quadrúpede amigo ou do bípede ingrato, dentro da alma do médico se acende a chama da solidariedade e da piedade cristã, a luz dela emanada extravasa, e o homem desponta como superior ao bruto. E aí grita mais alto o preceito hipocrático, de que “o amor ao doente, é o amor à medicina”; e continuando, acrescentou confidencialmente: a deslealdade, a insinceridade, a ingratidão, que os canídeos não conhecem, existem lamentavelmente também em nossa profissão. No exercício de minha atividade médica, tudo fiz para encaminhar na vida profissional, um jovem colega, recém-formado, que esperava na carreira que abraçara, conseguir pelo trabalho constituir seu lar; louvei sua intenção e tudo fiz para encaminhá-lo tanto quanto um amigo merece. Tempos após, pagou-me com uma ingratidão que muito me feriu. Por ironia do destino, fui designado para operar uma litíase biliar, cujo operando, era justamente o moço que eu havia amparado. Não vi ali, o amigo ingrato, mas tão somente um irmão em prova, que precisava vencer aquela batalha pela vida, em véspera de seu matrimônio. Restabeleceu-se, e nunca mais o vi. Concluindo, nosso saudoso amigo, desabafou-se, dizendo-nos: “A missão do médico é árdua e ingrata, sujeita sempre às críticas impiedosas que olvidam o bem que fazemos e proclamam as falhas do médico, como humano que é.” E acrescentou a sátira renascentista de que “quando a morte está iminente, o médico é um Deus; passado o perigo, um anjo; na convalescença, simplesmente um homem; e quando apresenta seus honorários, o diabo em pessoa!” Despedimo-nos e, ao fazer também o seu belo galgo russo estender-nos a pata em despedida, disse por fim: “Escuta moço: curar é um dom que a medicina aperfeiçoa. Saber exercer esse dom é um sacerdócio, no qual o dever de piedade e o de curar não estabelece diferença entre o amigo e o inimigo, entre o sábio e o bruto, entre o racional e o irracional, o que importa é aliviar a dor, se possível, curar. E ainda lhe digo mais: se o retardamento de urgentes providências, implica-nos em responsabilidades morais e jurídicas, no que o Código de Ética é claro, por que não levarmos à nossa mesa cirúrgica cachorros amigos, quando o mesmo fazemos muitas vezes a “amigos cachorros”?”
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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.
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