O DILÚVIO BÍBLICO

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.





Com sua fertilidade característica, Nelson Lorena escreveu em forma de crônicas sobre, história, ciências, crítica, política, religião e temas do cotidiano, entre outros. Do acervo de sua produção, entre 1977 e 1990, destacamos a matéria publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano I, edição nº. 36, de 20 a 26 de janeiro de 1978.



O DILÚVIO BÍBLICO


NELSON LORENA

Aceitar as coisas, que por várias fontes nos são reveladas, sem o menor senso de uma análise que incida sobre sua possibilidade, constitui um hábito muito comum em nossa gente. Muitas vezes a Fé, em casos para muitos, inexplicáveis, supre a deficiência da Razão. Esta, que é a faculdade de compreender, discernir as coisas, varia de pessoa a pessoa, considerando-se as gradações naturais da evolução anímica. Quem se situa na base da Torre Eiffel, divisa o Arco do Triunfo e adjacências; quem vai ao último andar, divisa até trezentos quilômetros além. Duas pessoas conversavam nos bancos da Rodoviária sobre o Dilúvio, assunto que a chuva que caía, inspirou. Era de se ver, como a autenticidade da narrativa era ardorosamente defendida pelo expositor. Solicitada minha opinião, por saberem a diversidade de minha crença, opinei pela impossibilidade do caso ou fato, pelas razões que fraternalmente expus. Como diz a Bíblia, Deus se “arrependeu” como qualquer mortal, de haver criado o homem, pelas iniqüidades que praticava. (a iniqüidade nunca foi tão disseminada como atualmente). Resolveu exterminar da face da Terra, homens, mulheres, crianças, animais, aves e répteis, que nada tinham com a dissolução humana, também pereceriam! “Arrependeu-se” também em criá-los; como qualquer um que fracassa em suas
realizações! Submergir a Terra afogar a iniqüidade humana, foi sua resolução. Noé e sua família foram poupados, pelas virtudes que possuíam, e considerados justos perante Deus, que lhe deu uma tarefa que mais parece um castigo que recompensa. Deu-lhe Deus o prazo de sete dias para construir uma arca de 180 metros de comprimento, por 50 de largura, com tábuas aparelhadas revestidas de betume, com vários cômodos internos, com uma janelinha de 60 centímetros (um côvado) e uma porta. Concluída, entrar na arca com sua família, composta de esposa, filhos e noras, um casal de cada espécie de animal, aves e répteis, alimento para si, sua família, para todos os animais. Dentro do prazo de sete dias, teria Noé que fazer chegar à arca, ursos brancos dos Polos, renas da Sibéria, cacatuas de Java, cangurus da Austrália, Lhamas do Peru e outros, de habitat diferente do Oriente Médio. Choveria quarenta dias e quarenta noites. Inundou-se a Terra; todo ser vivente morto; isto durou cento e cinqüenta dias! Até que a pomba solta voltasse com um ramo de oliveira. Onde conservaria Noé a carne para os animais carnívoros? Somente um casal de leões consome em 150 dias carne de quatro bois. Agora, as conseqüências desagradáveis: seres humanos em promiscuidade com animais, num ambiente, sem luz, sem renovação de ar, imundície e miasmas, podridão das dejeções ácidas dos animais, a obrigação do tratamento dos “pensionistas”, tudo isso foi uma tarefa cruel, imprópria para o Deus que aprendemos admirar através às maravilhas de Sua obra! Por isso, para mim o dilúvio bíblico foi uma lenda, muito mal engendrada. Essa minha opinião. Isto dito, não pude observar a reação que poderia experimentar o eufórico expositor, pois meu ônibus estava para partir. Durante a viagem, fiz um paralelo entre as tarefas dadas em sete dias para Noé, e as dadas em sete horas por um amigo meu, grande amigo que me mandou chamar em casa para assistir seus últimos momentos, em previsão fraterna. Era ele um homem ativo, dinâmico. Afeito ao trabalho. Foi em 1937. Era necessário se fazer uma represa em curto prazo, para levar água desde o Asilo Espírita, a 180 metros de distância. À tarde fui ver o serviço, encontrando os dois homens incumbidos do trabalho desesperados. “Seu Nelson; o patrão mandou nóis cortar pau, fincar, alargar o reservatório, escorar com bastante terra, fazer uma valeta na extensão de 180 metros, e agora à tarde vinha ver se o serviço tava pronto!” “Nóis só cortamos os paus, fincamos e puxamos um pouco de aterro e estamos como o senhor vê, suando que nem burro! Seu Tônio Ferreira deu pra nóis serviço pra uma semana e disse que agora à tarde vinha ver se tava pronto!” Meu amigo sabia a tarefa, demasiada e impossível em sete horas. Ele não gostava era de “cozinhamento de galo”, como se diz na gíria, por que, dizia ele evangelicamente, “Digno é o trabalhador do seu salário”.


Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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