LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.
O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano III, edição nº.132, de 03 a 09 de dezembro de 1979.
OS DOIS MUNDOS
NELSON LORENA
A cada dia que passa, acentua-se o aumento da miséria, da fome, das enfermidades, da descrença, do bruxuleio da Fé que lentamente se apaga ao sopro do ódio, da vingança que sai da boca, principalmente, dos que se arvoram defensores da glória do Altíssimo. Matam-se, destroem-se e exterminam-se em nome de um deus feito à imagem e semelhança de cada um. Diante dessa verdade dolorosa, o espírito de fraternidade desaparece, a vida se torna quase insuportável. Um desespero nos leva a pensar que, se Deus é perfeito e sábio, perfeita e sábia é sua obra; se ao contrário, porque haveria feito uma obra tão imperfeita ao ponto de descambar o mundo para o abismo indesejável da existência. Mas, a Fé e a Razão nos levam à crença, à convicção absoluta de que o mundo verdadeiro não é este em que os nossos corpos se arrastam e se enlameiam. Esta filosofia, pela qual nos batemos em luta, que chega, às vezes, até às raias da impertinência, vem sendo motivo para produções literárias, como a que mostraremos a seguir, atribuída a Afonso Schmidt, muito fina e delicada por seu lirismo e forma. Intitula-se:
PARAISO
Depois de incontáveis dias no fundo de uma cama, com o velho organismo despedaçado, sentiu que as últimas forças lhe iam faltando. O médico chegou, sentou-se à cabeceira e, após a auscultação, saiu acompanhado pelas pessoas de casa. Logo a seguir, lá dentro na varanda, irrompeu um choro com soluços abafados. A frieza das mãos e dos pés ia aumentando sempre. Sobrevieram prolongados períodos de inconsciência. Quando voltava a si, ainda perturbado, encontrava-se num quarto escuro com a janela aberta sobre o pátio, onde se delineava o encardido painel dos dias de chuva. Em certo momento quis falar, mas não pode; a língua estava solta e o queixo pesado. Houve pelo quarto um ir e vir de gente, um arrastar de cadeiras, soluços que já não eram abafados. Uma angústia..., uma angústia... Foi então que se deu aquela mudança, aquela coisa inexplicável. Viu-se fora da cama, em pé, olhando para o leito onde estivera até então e, em seu lugar viu um boneco de cera, com a barba crescida e os cabelos brancos escorridos pela testa. “Quem foi que deitou esse palhaço na minha cama?” Ninguém o escutou. Mas sentiu um imenso alívio. Estava livre da vida. Arre como dói a vida! Via-se, de novo, na casa de sua infância, naquele mesmo quarto, na mesma cama que cheirava à flor de macela, diante da vidraça muito azul. Lá estavam as rosas miúdas, a parasita do brejo, a corruíra que todas as manhãs pipilava, saltando de um galho para outro. Fazia, como outrora, um dia esplêndido. No fundo do quintal, alguém rachava lenha; era um alguém que ele havia conhecido. O relógio, de outros tempos, fazia-se ouvir pausadamente na sala contígua. Uma paz sobrenatural. Então, como explicar aquilo? Viu a mãe a costurar, sentada na borda da cama. E cantava aquela moda que ele havia esquecido, desde que..., desde que... Agora recordando a mãe, viu-se pequenino, deitado numa caminha antiga. “Que é isso menino?” “Mamãe, eu morri!” Ela sorriu docemente como dantes. “Mamãe, então eu não morri? E aquela existência angustiosa que lá ficou? E a enfermidade? E os remédios? E o manequim de cera de boca aberta, deitado na minha cama, bem no meu lugar?” Ela, a mãe continuava a sorrir com a mão esquecida sobre a costura. Então o pai, que ele ainda não tinha visto ao pé da janela, numa atitude que outrora era sua, perguntou sem curiosidade: “Com quem é que você está falando?” “Com o menino, ele sonhou que morreu.” AS
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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.
Veja também:
NELSON LORENA – O ARTISTA CACHOEIRENSE
A ARTE DE NELSON LORENA
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