O GATO, A ARANHA, O HOMEM.

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano IV, edição nº.158 , de 09 a 15 de Junho de 1980.




O GATO, A ARANHA, O HOMEM.

NELSON LORENA


Em minha adolescência, visitava um amigo, em casa do Dr.Bennaton. Enquanto o meu amigo não chegava, pois que estava ausente, percebi que um camundongo, de quando em quando, punha o focinho para fora de uma talisca do soalho. Por fim, meio tímido ainda, arrisca sair de seu esconderijo, mas foi percebido por um cãozinho que rapidamente o alcança e o machuca. Aos gritinhos do camundongo, um gato angorá é despertado, põe em fuga o cãozinho e, assim me pareceu, toma a defesa do bichinho. Segura-o entre as patas, parece examinar o ferimento, lambe-o várias vezes, no que, parecia estar assim aliviando o sofrimento do ratinho. Achei aquilo muito estranho e até admirei a atitude piedosa do gato. Deixava, às vezes, o camundongo se esquivar para, logo após, alcançá-lo, lambendo-o novamente. O ratinho, embora "ensaboado" pela saliva do gato, parecia estar se recuperando, pois logo em seguida ensaiou uma fuga em direção a fenda do soalho, por onde saíra; mas o gato, mais rápido, o alcança, dá-lhe algumas dentadas e, entre seus gritinhos o engole como se deglutisse um quiabo. A princípio, a estranha piedade me encheu de espanto, mas depois, a crueldade insultou meus sentimentos e me revoltou. Os anos passam, as observações se sucedem e eu vejo que, comumente, sob a capa de uma falsa piedade, se ocultam interesses mesquinhos. J.G. de Araújo Jorge, figura das mais altas de nossa intelectualidade, conta em uma de suas poesias que uma mosca, inadvertidamente, ao abeirar-se de um vaso caiu dentro dele e se debatia num esforço inútil para sair daquela situação. Uma aranha percebe a situação angustiosa do inseto e, depois de muito “pensar”, resolve livrá-lo da horrível morte por afogamento. Desce ao fundo do vaso e consegue salvar piedosamente a mosca que, agradecida, enxuga as asinhas e as patinhas. Poucos instantes após, consegue ensaiar seus primeiros vôos no sentido de sua libertação. Aos olhos do aracnídeo, todos os seus movimentos estão controlados. E quando tudo parecia acenar-lhe a liberdade, a aranha prende-a com suas presas e a devora. E, quanta “piedade de aranha” por esse mundo afora! Entre as boas coisas que tivemos em nossa cidade, estava o Milton Jazz. Conjunto harmonioso, em todos os seus aspectos, era admirado pelas cidades vizinhas. Certa vez, fomos tocar em Silveiras. Tivemos ótima receptividade; salão amplo, repleto do que Silveiras possuía de mais alto em sua elite. A certa hora do baile, uma moça percebe entre o madeiramento do forro, um gambá, naturalmente atraído pelo “encanto” de nossa música! Dado o alarme, estabeleceu-se o pânico. Cessam assim, entre os gritos nervosos das moças e senhoras, o baile e a música. Um rapaz mais afoito consegue um bambu ou uma vara qualquer e fustiga o marsupial, que cai em cheio no salão, guinchando e se transformando em bola de futebol nos pés da turba. Acuado por todos os lados, procura a porta de saída para a fuga, onde o nosso chofer consegue pegá-lo, livrando-o da morte certa, acomodando-o no porta-malas do carro, numa atitude muito elogiada por todos nós. Serenados os ânimos e a recuperada a calma, recomeça o baile. Quando de retorno, o motorista se mostrou revoltado com a tamanha brutalidade dos que queriam matar o gambá. Que o animal também era filho de Deus, e, por conseguinte tinha direito à vida e outras coisas mais. Passada uma semana, mais ou menos, encontro o piedoso motorista. Então Zé, como vai o gambá, sarou, sarou? E ele me responde: “Sarou, engordou,” e com um sorriso mascarado; “matei-o e o comemos, lá em casa somos loucos por carne de gambá. Estava delicioso.” Parodiando Madame Roland, repetimos: Piedade! Piedade! Quantos crimes se cometem em seu nome?! Há certos comportamentos humanos que, comparados com os da animalidade, se distinguem pura e simplesmente pela verticalidade de nossa postura física.



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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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