O VELHO PESCADOR

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano III, edição nº.152, de 28 de abril a 04 de maio de 1980.




O VELHO PESCADOR

NELSON LORENA


O afamado Chico Xavier, o “Santo de Uberaba”, usando a expressão de Agostinho Ramos, referindo-se ao temor generalizado da morte, afirma que não há por que a temermos, pois que morremos todos os dias, numa alusão ao sono como seu símile perfeito. Há, evidentemente, um desprendimento parcial da alma à procura de uma volta “ao lar materno”, em sua momentânea fuga do ergástulo da carne. Parece-nos haver uma permuta de situações; assim como, enquanto o corpo trabalha e luta o espírito mergulhado na carne, de alguma maneira descansa; enquanto o corpo repousa pelo sono, o espírito trabalha e luta. Não sabemos se nossas opiniões e conceitos aqui emitidos, possam ter o endosso das várias filosofias religiosas. Sabemos que são nossas, simplesmente nossas. Temos observado que no sono como na morte, entramos num estado de languidez, de relaxamento, em que os sentidos entorpecidos não reagem ao meio ambiente. Há, no entanto, casos em que, excepcionalmente, respondemos a estímulos exteriores, quer seja no sono como na agonia. Lembramo-nos que, certa vez visitamos um doente em coma, há muitas horas. Os parentes insistiam com perguntas, no desejo justo de ouvir-lhe voz, sem resultado; mas quando se mencionou o nome de alguém muito seu amigo, ele que até então estava mudo disse: “Um amigão, um a... mi... gão”, e expirou.

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Uma praia, como muitas por este Brasil afora, abandonada pela poluição ou coisa que o valha. Entre dois coqueiros, as ruínas de uma velha cabana fustigada pelos temporais. Nas proximidades, em parte mergulhado nas areias, um caíque carcomido pelo sol e pelo tempo, o casco corroído pela salinidade e sobre ele, caído e quebrado, o mastro envolto nos farrapos da vela. No silêncio, somente quebrado pelo marulhar das vagas que os tocavam na preamar, iam desaparecendo aqueles destroços, testemunhas mudas, silenciosas discretas, talvez de romances, dramas e tragédias de que a vida é farta. Antigamente ali viviam, um velho pescador, sua filha viúva e mãe de um garoto de uns sete anos presumíveis e seu filho mais jovem, que o ajudava no rude mister da pesca. E como os avós adoram os netos, era de se ver o chamego entre os dois! Um dia, sentado nos joelhos do velho, o garoto lhe pergunta: “Por que vovô, você não pesca de dia? A noite é tão escura e nós ficamos aqui, sozinhos!” E o avô explica ao menino: “Durante a noite, a terra se esfria, e a brisa sopra da terra para o mar, levando o nosso barco; quando o sol começa de novo a aquecer a terra, o vento sopra do mar para a terra, trazendo nosso barco com os peixes. Compreende a razão?” Duas vezes por semana, ajudado pela filha, o pescador arrastava o caíque para o mar, enquanto seu filho, sobraçando o mastro e a cordoalha, dirigia-se ao barco. Não raro, esquecia-se da vela. Com o que a irmã sempre o advertia: “Ô, mano traga a vela; você a esqueceu”! Numa calmaria, o que esporadicamente acontecia, o velho pescador, adoeceu gravemente. A desolação e o desespero assolaram aquela cabana, outrora feliz. Um facultativo das imediações é chamado e atesta a gravidade do mal. Poucos dias após, entra em coma, ou seja, em morte aparente. As extremidades não recebiam o sangue, frias que estavam; a respiração, cada vez mais espaçada. Na parede enfumaçada, uma imagem de Nossa Senhora dos Navegantes; à frente da qual, as orações se sucediam. O velho pescador parecia querer balbuciar qualquer coisa, subitamente, cessa o ritmo respiratório e a filha, aflita, grita para o irmão: ”Traga a vela, depressa, traga a vela!” E reunindo as últimas energias, o moribundo em voz fraca e cavernosa, diz: “Não precisa, vou mesmo a remo”, e nada mais disse. Achamos que Chico enunciou uma verdade, e nós a endossamos. No sono, a imagem perfeita da morte.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.



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