TRANSPONDO A LAMA

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano III, edição nº.150, de 14 a 20 de abril de 1980.




TRANSPONDO A LAMA

NELSON LORENA



Tenho por hábito, quando a oportunidade aparece e a meditação me impõe isolamento, fugir para o silêncio do meu amplo quintal, à sombra das mangueiras e bambuais. Certo dia, ao contornar um lamaçal que as chuvas da véspera arrastaram, quebrou-se sob meus pés, um velho e carcomido tronco de laranjeira, descobrindo-se na talisca, um ninho de formigas. A súbita destruição daquele lar em paz foi como se um terremoto abrisse ao meio uma cidade. O pânico, a desordem e o desespero, apoderaram-se da comunidade. A rainha, naturalmente deu o alarme de “salve-se quem puder”. As larvas, alheias à magnitude da catástrofe, pareciam as únicas criaturas calmas. Assemelhavam-se aos nossos filhos, despreocupados e indiferentes quanto ao futuro, quando ainda envolvidos pelas membranas amnióticas no ventre materno. Aí vimos, então, o instinto de sobrevivência e perpetuação da espécie apoderar-se da comunidade, na luta pela salvação de toda a ninhada. Por sobre a lama, dos seixos e dos gravetos, ora num ora noutro, o êxodo se fazia; de machos, fêmeas, operários e cortadeiras. Este simples incidente foi o objeto de minha meditação. Após orar, como de costume, filosofei sobre o pequeno mundo, que recomeçava a luta pela sua reconstrução e o grande mundo, que luta pela própria destruição. Comparei-o à vida humana em seus desatinos, suas discórdias, à lama sobre qual vivemos, aos miasmas que nos sufocam, à corrupção que nos envergonha, ao desamor que animaliza e que atinge os próprios “escolhidos”. Parecia-me que os pequenos himenópteros se agigantavam e que eu diminuía cada vez mais. Uns querendo conservar o seu mundo, outros querendo destruí-lo. Mas, nem sempre o senso comum é critério de Verdade. O seu Espírito veio com uma minoria. Em meio à lama, à tempestade que ameaça convulsionar a Terra, ainda existem criaturas, quais relâmpagos nas noites caliginosas, cujos gestos denunciam o advento de um Amor que ainda reinará sobre ela. A medicina é o campo mais propício para esse advento, ela está apta para curar o corpo e, ainda, pelo exemplo, para aperfeiçoar a alma no cultivo do amor fraterno, posto que, a arte de curar abrange os dois campos que integram o homem. Relembrei um fato em que, médicos conscientes do apostolado que sintetiza sua profissão, fizeram sorrir lábios, até então, contraídos ante a desesperança, a dor e o mal que os emudeceriam. Há mais de um ano, foi internada no Hospital das Clínicas, uma senhora com insuficiência renal irreversível e o transplante seria a única solução. Em princípio deste ano, uma jovem americana, com o tipo de sangue idêntico ao da nossa enferma, morreu num acidente de automóvel. O fato chega ao conhecimento dos médicos assistentes que, em extrema dedicação conseguem receber, após quarenta horas, o rim da jovem trazido por um técnico. Em menos de um mês, feito o transplante, a enferma recebe alta. A bondade, o espírito humanístico, o amor ao doente e à profissão, venceram as dificuldades encontradas na obtenção do rim, trazido desde mais de sete mil quilômetros de distância. É na angústia, na dor do enfermo que o caráter do médico se revela como Homem, como um sacerdote da “divina arte”, e prolonga a vida de um corpo que é o santuário do espírito em ascensão. E, ao término de sua labuta, alegra-se com o dever cumprido e pode dizer: “hoje fiz sorrir alguém.” Por sobre a lama que, do vulcão da ambição e do delírio de poder, ameaça a humanidade, vemos missionários de roupas brancas, passando sem se enlamear, derramando entre lágrimas de dor e sorrisos de esperança, a semente de um mundo que um dia virá.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.




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