MARCOS QUE O TEMPO NÃO CONSOME

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano V, edição nº.215, de 20 a 26 de julho de 1981.




MARCOS QUE O TEMPO NÃO CONSOME

NELSON LORENA


O velho soldado mais parece um inseto emaranhado nas teias do Destino. Desiludido de um mundo que não mais o atrai, revive os aspectos díspares de sua longa existência, afortunados uns miseráveis outros, glórias e fracassos, vitórias e derrotas na longa e caprichosa caminhada. Vez por outra, alguns marcos, à sombra dos quais sua imaginação se detém, falam de maneira mais gritante no sacrário das lembranças, como um eco a reboar nas quebradas do caminho. TREZE DE JUNHO. Enquanto a cidade explode em festas em louvor do Padroeiro, na tela do seu pensamento fixam-se as imagens melancólicas dos últimos instantes de um amigo que partiu para a Eternidade. Alberto Gonçalves de Barros, líder espírita, encarnação do bom senso. Funcionário público notável pela cultura, finura no trato e na lhaneza, melhor teria sido, se seguido a carreira diplomática. Lembra-se então o velho caminheiro que, certa vez, o Major Severino, pai amantíssimo que era, sofre ao ver sua filha em comportamentos paranormais, diziam que “possessa de um espírito maligno”. O major pede-lhe (ao Alberto) para ver o caso, angustiado que estava. Alberto, com aquele sentimento cristão que lhe era peculiar e a Fé que era seu broquel, põe-se ante a moça, profere sua oração e, logo em seguida, ela volta ao seu estado normal com a exclamação do velho português: “Alberto, estou a veire e não estou a creire” (sic). DEZENOVE DE JULHO. Na extenuante jornada, o velho soldado descansa nesse marco. Lembra-se de Agostinho Ramos, mais que nos outros dias, e isto porque é o dia de seu aniversário natalício, num dos capítulos de sua passagem pela Terra. Com os rebentos que desta árvore brotaram, reparte o soldado cansado os pedaços de seu coração. Extasia-se ante o formidável tronco desse Baobá de extraordinária oratória, fertilidade incrível de memória, desse novo mecenas a estimular os modestos artistas da pintura, da escultura, das coisas que escrevem, e sente o ferrete dessas virtudes a marcar em seu espírito a eternidade da amizade. Pensa por instantes o velho caminheiro, se sua voz fosse ouvida, propor ao Prefeito dar o nome de Agostinho Ramos ao viaduto sobre a Central, como uma homenagem ao gigante da nossa intelectualidade. VINTE DE JULHO. Se vivo estivesse, aniversariava hoje Monsenhor Machado. É admirado agora, mais do que quando “xingava” os espíritas e a sua doutrina. Agora sabe ele que as coisas não são como julgava. “O Asilo Espírita será uma fábrica de loucos”, “Se há gente que não deve ser levada a sério, são os fabricantes de loucos de Cachoeira”, “Depois da sífilis e do álcool é o Espiritismo que comumente leva aos hospícios, os loucos”. Lembra-se o viajor, que certa vez dissera pela Imprensa que Monsenhor Machado foi sincero em suas convicções, rigoroso em seus preceitos e coerente na conduta com a Fé que abraçou e pregou. Pela força de seu dinamismo e austeridade, fez pela sua religião tudo quando pode, pode tudo quanto quis e quis tudo o que um sacerdote deve querer. Enfim, dentro de si, um grande Homem. DEZ DE JULHO. Descansa e encerra suas reminiscências o velho soldado, prestes a vestir seu “pijama de madeira”. Recorda que, um dia, recebera sua mãe a visita de uma amiga, que trazia no colo um pequenino, louro como um filho da velha Albion. O garoto, adormecido, foi colocado na cama da sala de visitas. Amigo que sempre foi de crianças, ao entrar no aposento, viu o menino que despertava. Pegou-o ao colo e recebeu, com risadas das mães, uma mijada do irreverente amiguinho. De um salto, vê o menino no primeiro dia de aula a responder ao professor na hora da chamada “trezento” aos invés de “presente”, como os pais lhe haviam recomendado. Inteligente, no dia seguinte respondeu certo. Em mais um vôo do subconsciente, está recebendo aulas de violino e ia bem no estudo. O vizinho do professor, o Hugo Vilela, que não suportava o ranger do arco encerado ao encontro com as cordas, um dia lhe diz: “Não agüento essa miação do seu aluno. Ou você o manda embora ou eu mudo de casa”, e mudou mesmo. VINTE E UM DE JULHO. Hoje, vê o velho soldado no dia do seu aniversário, em seu Oráculo dedicado a Esculápio, nos dias de consulta, os carentes de saúde, em busca de seus méritos científicos e alto sentimento humanitário.



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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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