NA INFÂNCIA DO SABER

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas, escritas entre 1977 e 1990, sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, entre outros. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano V, edição nº.209, de 05 a 14 de junho de 1981.




 NA INFÂNCIA DO SABER

NELSON LORENA


Como deveriam influir na imaginação das civilizações antigas os fatos insólitos, os fenômenos atmosféricos, as erupções vulcânicas, a gênese das plantas e dos seres, o ciclo solar, o porquê do frio e do calor, do raio e do trovão, enfim, a razão de tudo? Amortecida na carne, a essência da sabedoria recebida no seio de Deus, tudo lhe deveria ser misterioso e inexplicável. No perpassar dos séculos, o aumento gradativo de conhecimento veio dar respostas a grande parte de suas interrogações. Farady, o grande físico inglês, já dizia que, com as leis que desconhecemos poderíamos construir outro universo. Temos conhecimento de fatos e coisas cujas causas ignoramos. Inexplicadas umas, explicáveis outras, mas todas assentes nas bases movediças das hipóteses e na sanção da ciência, por isso mesmo, duvidosas. Lemos há tempos que, uma jovem americana fora passar alguns dias em casa de uma sua amiga, uma mansão retirada da cidade, em zona rural. O quarto de hóspedes dava para a frente da mansão, limitada por um muro de pedras superpostas, entrada vedada por grade e portões de ferro. Uma noite, a visitante acorda com o ruído estridente do portão sobre o gonzo ao ser aberto. Uma carruagem do século XIX se movimenta sobre o calçamento cimentado puxada por dois cavalos pretos. O cocheiro, ao passar pela sua janela a descobre e, impecavelmente uniformizado, com refinada mesura lhe diz: “Há lugar para mais uma”. Assustada, fecha a janela, notando porém a feição macilenta, as sobrancelhas pretas e largas em círculo sobre os olhos, o nariz adunco, completando a fisionomia do cocheiro. Silenciou quanto ao acontecido e nada transpirou à família, embora impressionada com o acontecido. Na noite seguinte, o fato se repetiu. Novamente o ruído do portão, o movimento do coche, os cavalos negros e a cortesia do cocheiro ao divisá-la da janela; “Ainda há lugar para mais uma”. Vivamente impressionada, alega à família que a hospedava, razões outras e apressa seu retorno ao lar. Dias após, ao tomar um elevador num dos prédios da cidade, já quase lotado, o ascensorista lhe diz: “Ainda há lugar para mais uma”. O incidente da mansão a faz olhar para o ascensorista, que outro não era senão o mesmo cocheiro com seu impecável uniforme, face macilenta, sobrancelhas largas e pretas em arco sobre os olhos e nariz adunco. Com um grito ela se afasta até a parede, o elevador põe-se em movimento e com um estrondo horrível se afunda no vácuo do subsolo, matando todos os ocupantes. Nem por hipótese sabemos explicar o impressionante fato. Na Inglaterra, o nome de Hugo Williams, vale tanto quanto um seguro de vida. Em 1664 o navio Manoi foi metido a pique por uma tempestade; dos oitenta passageiros, somente um se salvou: Hugo Williams. Em 1785, outro navio foi atirado no litoral da Ilha de Mann, com sessenta passageiros, um só se salvou: chamava-se Hugo Williams. Em 1820, um barco de recreio com vinte e uma crianças choca-se no Tamisa com um transporte de carvão: todas as crianças morreram, com exceção de uma delas, chamada Hugo Williams. Em 1889, um navio carvoeiro com equipagem de nove homens naufragou salvando-se dois homens; Hugo Williams, tio e Hugo Williams, sobrinho. O mês de Maio é fatídico na história da França. Neste mês deu-se a terrível revolução, a Jacquerie, que ensangüentou a França; Joana d’Arc foi aprisionada e queimada viva; Henrique IV, aquele do “Paris vale bem uma missa” foi assassinado, Luis XV faleceu. Ainda em Maio a queda dos Girondinos e o início do Terror; Napoleão morre em Santa Helena; a França, derrotada, assina em Frankfurt o tratado de paz com a Alemanha; o presidente Doumer foi assassinado em 1932. Leio muito sobre religiões e, dentro delas, jamais encontrei a razão do sofrimento dos animais inferiores. Quando eu trabalhava no Rio, em 1929-1931, conheci uma senhora que possuía um cão rotundo e feio de sua grande estimação; passava como se fosse pessoa da família, bem tratado, como dizia meu extraordinário Pai, “à vela de libra” e somente comia doces da Confeitaria Colombo, o feliz molosso. Um dia ao sair do serviço, vi quando um carro passando por cima de um pobre e abandonado vira-latas lhe estoura o ventre; com os intestinos como um rolo de cordas, desenrolado e sangrento, sai pelo meio fio arrastando as tripas para morrer logo após. Por que essa diferença de destinos? Em termos de justiça divina não encontro a causa que, forçosamente, deve haver. Um amigo a quem contei o caso disse-me que a metempsicose, que ele aceita piamente, explica as razões. Que a transmigração das almas dos mortos também pode se verificar por involução aos animais irracionais e, citou o seguinte fato: não se enquadrava com a sogra, discutiam muito e um dia ela lhe disse que tinha vontade de matá-lo a dentadas. Viúva, andava invariavelmente vestida com um vestido preto e pintas brancas, aliviando o luto. Falecida a sogra, ele teve paz por algum tempo. Quando uma noite, ao chegar de viagem, levou a máquina ao Depósito, entregou o boletim de ocorrência e foi para a Vila descansar, ao passar por certo lugar foi atacado por um cachorro preto com pintas brancas, a dentadas, chegando em casa com somente uma perna da calça, ensangüentado. “A metempsicose é um fato”, disse-me ele, “tenho certeza de que era a minha sogra”. Há razões para tudo dentro do TODO. Chegará o dia, em que saborearemos a doçura do fruto que a casca esconde.



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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


Veja também:


NELSON LORENA – O ARTISTA CACHOEIRENSE


A ARTE DE NELSON LORENA



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2 comentários :

Claudia Varella disse...

Milton,
os textos produzidos por Nelson Lorena são sensacionais, bem escritos e interessantes. Apesar de (quase sempre) atemporais, seria muito bom saber quando eles foram publicados. Deixo uma sugestão: acrescente no final do arquivo a data da publicação do material.
Beijo.

Milton Lorena disse...

Muito obrigado Claudia

Fico feliz que você aprecie as crônicas e tenho certeza que o Nelson, de onde quer que ele esteja, estará retribuindo com gratidão o seu reconhecimento. A data e o número da edição em que foi publicada cada matéria no "O Cachoeirense", encontram-se no texto de apresentação ao lado da fotografia, antes do título das crônicas.

abraços