A LENDA DA LAGOA SECA

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, escritas entre 1977 e 1990. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.320, de 19 a 25 de setembro de 1983.




A LENDA DA LAGOA SECA

NELSON LORENA



As luzes do século XVIII bruxuleavam no seu ocaso. Jacques Felix, João Bicudo Leme, Domingos Leme, Bento Rodrigues Caldeira, seguindo o curso do Paraíba desbravavam as florestas, de Taubaté até Lorena, movidos, talvez pelo espírito aventureiro dos paulistas, talvez em busca de ouro e de índios, impulsionados pela ambição que move o homem e consequentemente o progresso.
Cachoeira ainda não havia conhecido o homem. Existia sim, um reduto de índios Purís, escorraçados que foram de Taubaté por Jacques Felix. O arcabus do homem ainda não fora ouvido, nem ferido a beleza de nosso céu. Nas imediações desse reduto, emoldurada por uma floresta virgem, via-se uma lagoa, e que bela era! Um recanto de paz, de doce solitude! Pequeno, sentir-se-ia o homem, ante tão majestosa riqueza. As árvores irmanadas, abraçadas por cordoalhas de cipós floridos, à guisa de festões que desciam até a relva umedecida, para novamente subirem enfeitados de flores, as mais variadas, entre parasitas, begônias, passifloras, que permaneciam indiferentes ao furor dos ventos. Como um espelho em fundo verde, as águas da lagoa recebiam durante o dia os raios dourados de Guaracy, o sol, e durante a noite, em seu maior brilho, Yacy, a lua. Diz a lenda que, em certas horas do dia, Mãe D’Água ali se banhava, entre garças, saracuras, cegonhas, jaguatiricas, lontras e onças, com a simplicidade e inocência de um mundo paradisíaco. A perfeição de suas formas, a beleza cândida de seu rosto, ante a qual se curvaria a própria Frinéia, refletiam a castidade, o pudor que para a mulher é o broquel da sua dignidade.
A lagoa, diz a lenda, nasceu com Mãe D’Água e juntas morreriam, num pacto de eterna e sublimada união. Uma noite, Yacy, a lua, despontou em toda sua magnitude e brilho, como um disco de prata em fundo cinza. Mãe D’Água banhava-se em homenagem a Yacy; súbito, um belíssimo exemplar de cavalo, preto como azeviche, luzidio e fogoso, relincha espadanando as águas, aterrorizando Mãe D’Água. Pressentira que o homem se aproximava à sua procura, desgarrado que fora da tropa...
Volta Yacy na noite seguinte em todo seu esplendor, prateando as águas. Mãe D’Água surge entre os aguapés e se atira ao largo. Novamente, relincha o cavalo preto perseguido pelo cavaleiro ousado, que a surpreende em toda a sua nudez, bela, pura, majestosa, com todos os seus encantos. Ferida de morte em sua virgindade e pureza d’alma, profanado seu corpo pelos olhos cupidos do homem, afunda-se lentamente entre os piris, tabôas e aguapés, afogando-se na lagoa que, lentamente, também foi secando e morrendo com ela...
Cumpria-se o fatalismo da lenda, nasceram juntas e juntas morreram.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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