A MENTIRA, ESSA GRANDE VERDADE

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano. Escritas entre 1977 e 1990, a matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.307, de 20 a 26 de junho de 1983.




A MENTIRA, ESSA GRANDE VERDADE

NELSON LORENA



Quem quiser ser livre que busque a verdade, disse certa vez Jesus. Em época alguma da humanidade o homem foi livre, justamente, por jamais haver encontrado a verdade. Verdade que o próprio Mestre, quando sobre ela interrogado, não a definiu. E assim nós, pobres humanos, vivemos como barcos à deriva,  mergulhados num oceano agitado por preconceitos, cavilações, mentiras, desde as mais grosseiras às mais piedosas.

Paradoxalmente, a mentira tem sido na vida de relações humanas a maior força de equilíbrio na paz social. Ontem, encontramo-nos com uma moça, mãe solteira, que sabendo do nosso enlevo pelas crianças, fez questão que víssemos seu filho, embora fruto de uma promessa vã. Vimos, estampados naquele rosto inocente, todo o sofrimento, toda a amargura, todo o pesar da mãe, por haver acreditado numa promessa falaz. E, dentro do conceito que possuímos pela beleza, achamos a criança feia por demais. Perguntou-me a mãe: não é mesmo uma belezinha? Respondemos afirmativamente, com uma mentira, enchendo-lhe a alma de alegria que em seu sorriso estampou. Teríamos perdido sua amizade se o contrário disséssemos. Mentem as mães, logo aos primeiros dias do filho nascituro, quando para sossegá-lo dão-lhe uma chupeta, à guisa de seu seio. Mentem os laboratórios quando pregam a excelência de seus produtos, muitas vezes não comprovada.

Mentem os noivos quando, na presença do sacerdote, das imagens e dos convidados, juram fidelidade na dor ou na alegria, no infortúnio ou no prazer, por toda a vida. Quantas vezes mentimos, quando procuramos um amigo médico para um atestado que justifique falta sem justa razão; dupla mentira que manteve nosso “crédito” funcional. Mentem os políticos, cujas promessas são meros cheques sem fundos para conseguir o apoio do eleitor de boa fé. Mentem os prefeitos quando, na impossibilidade de atenção, mandam dizer que não estão pela secretária que, por sua vez, mente também. Dentre as mentiras, a mais justa e mais recomendável é a mentira piedosa.

Temos visitado um amigo, gravemente enfermo, minado por incurável moléstia. Vivemos nesses instantes a violência dessa dor compungente que assalta todo aquele que prevê um fim que não pode evitar. A oração torna-se um dever. Por instantes, pensamos no médico e seu relacionamento com o “condenado”, com aquele que confiou em seus conhecimentos. Compreendemos a dor desse médico ante a fragilidade de seus conhecimentos, dor agravada pelo elevado sentimento missionário do ideal que abraçou, mas atenuado por haver sempre ensinado aos seus enfermos que o homem vive são, ama, adoece e morre, porque ele quer ser são, adoecer e morrer. O silêncio é mais brutal do que a maior realidade. O médico, sacerdote do Bem, sabe disso e, fiel à sua ética, jamais deixará de dar ao enfermo a piedosa mentira de esperanças que o moribundo leva com sorriso na alma.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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