CÃES TAMBÉM AMAM

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, escritas entre 1977 e 1990. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.356, de 18 a 24 de junho de 1984.




CÃES TAMBÉM AMAM

NELSON LORENA



Era de se ver, a amizade que existia entre os dois amigos! Ficávamos horas a fio observando, comparando e tirando conclusões filosóficas durante o tempo em que, todos os dias quando a tarde se aproximava, os dois amigos, um cão pastor alemão de rara beleza e um vira-latas de porte médio, musculoso, de ração comum, se empenhavam em brincadeiras, puxando e repuxando pelas pontas uma corda sobre um terreno já por isso mesmo batido, abaixo de um grupo de laranjeiras no quintal. Longe estávamos de pensar que o destino dos dois viesse nos dar algum dia uma lição deste Amor que os homens, desde os primórdios da humanidade, não conhecem. Na ocasião a que nos referimos, deu-se um fato que volvemos a recordar. Atropelado por uma caminhonete na Rodovia Presidente Dutra, morrera o pastor alemão. Dois dias após, fomos localizá-lo às margens do Rio das Minhocas e o trouxemos, enterrando-o em lugar afastado da casa para que o vira latas não o visse, poupando-o de um sofrimento maior, isto, porque sabemos que o irracional também ama. Voltando à nossa casa encontramos o vira latas enrodilhado, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras, triste, silencioso e rejeitando o alimento, pela ausência do amigo. Sentindo pelo faro no odor de nossas vestes a presença do pastor e tocado por uma esperança que fora vã, corre e salta a janela e se embrenha pelo mato já alto que invadia o pomar. Fomos ao seu encalço e não foi difícil encontrá-lo, cavando desesperadamente a sepultura do companheiro no anseio de revê-lo. Não conseguindo, ali se deitou, e todas as manhãs para lá se dirigia e deitado sobre a cova permanecia até quando a noite chegava, sem água e sem alimentação. Como acontece em tais transes conosco, quando o sofrimento nos bate, aconteceu com o vira-latas. O tempo atenuou a dor e a vida foi voltando ao seu estado normal. Na ocasião, narramos o fato e prometemos perpetuá-los em um trabalho de escultura, o que somente agora concluímos. Todas as religiões nos levam à afirmação de que somos todos, os filhos de um mesmo Pai, de um Deus, causa primária de todas as coisas. Daí a afirmativa de que somos todos “irmãos”. Família desunida em todas as épocas da humanidade, família que se destrói em guerras e cavilações grosseiras e estúpidas, onde cada irmão é tão somente um acidente fisiológico e não mais o elo da corrente fraternal que se iniciou no seio de Deus. Já o amigo, é o verdadeiro irmão. As virtudes que o caracterizam são as colunas mestras do grande edifício da fraternidade universal. Sócrates classificava de Cão, o discípulo dedicado, afetuoso, sincero, benevolente, capaz de um sacrifício. Um dia, quando os “irmãos” de todas as crenças se tornarem Amigos, a Paz entre os homens deixará de ser uma miragem. É vergonhoso para nós, “Homo Sapiens”, que exemplos dados por cães venham nos despertar para as ações nobres que são o selo da mais perfeita Obra do Senhor. Se o nosso Cão falasse, talvez ouvíssemos: “Amai-vos! Nós, cães, amamos!”


*****


Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


Veja também:


NELSON LORENA – O ARTISTA CACHOEIRENSE


A ARTE DE NELSON LORENA



*****

Nenhum comentário :