O CARUNCHO DA DESLEALDADE

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, escritas entre 1977 e 1990. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.359, de 01 a 08 de julho de 1984.




O CARUNCHO DA DESLEALDADE

NELSON LORENA



Há povos que se tornam dignos de nossa admiração pelo espírito de união que demonstram, mormente nas ocasiões em que a integridade física está em perigo. Entre os raros que admiramos está o povo holandês. Enquanto os templos religiosos fechavam as suas portas e abriam-se as dos quartéis, porque o “matai-vos uns aos outros” era o mandamento na primeira guerra mundial, a Holanda era um oásis em meio ao mar de fogo que a circundava. Grande parte de seu território se encontra abaixo do nível do mar, do qual conquista terras afastando-o com diques. Quando acontece a ruptura de um deles, os sinos das igrejas repicam dando o alarme, o povo acorre ao perigo e como um só bloco humano sustenta o dique, enquanto outras turmas reparam as avarias. Há, pois, quando a pátria está em perigo o espírito de união e de sacrifício na luta comum para a sua sobrevivência! Admirável povo! Na exaltação da solidariedade, na sua perfeita conscientização política vemos o espelho em que nossos governantes deviam se mirar. Após um período de quatorze anos que o processo revolucionário foi instaurado, o nosso João, herdeiro das idéias democráticas de quem é filho empossado declara: “Hei de fazer deste País uma democracia”, o que implica afirmar que ela não existia, embora, para isso processou-se a Revolução. Ninguém pode pôr em dúvida a nobre intenção de S.Excia. Faltou-lhe o respaldo daqueles a quem conferiu as tarefas precípuas para a transformação política da Pátria. Os desmandos, as corrupções, os escândalos financeiros, os compromissos a prazos insolváveis, a imprevidência, foram os vagalhões que romperam os diques de nosso prestígio como nação soberana. Os sinos, pela voz da imprensa e sobretudo do povo, dão o alarme que não é ouvido pelos responsáveis. Não se pode afirmar que o nosso João não houvesse escolhido assessores e auxiliares competentes e capazes, com a colaboração dos quais efetivasse sua promessa de democratização. Mas, então, o que foi que houve, o que está havendo? Talvez possamos admitir a inexistência do espírito de renúncia ao bem estar individual, em detrimento do bem comum que constitui a base da democracia, que todos queremos e que João nos prometeu. Talvez possamos admitir que, por vezes, a cultura e a capacidade tecnológica entrem em conflitos com a dignidade, com o caráter, com a nobreza de sentimentos, atrás dos quais se ocultam os oportunistas, os falsos idealistas, os aproveitadores. Coitado do João! Desiludido, “está contando os seus dias de governo”, sem haver conseguido a democracia prometida. A meta de acabar com a pobreza conseguiu, não pelo processo cristão e humano que, estamos certos, desejava, mas sim pela incapacidade administrativa de seus assessores, o que arrastou a nação onde vegetam trinta a quarenta milhões de brasileiros, onde a sobrevivência está quase a zero, onde a política tornou-se profissão para a qual nem diploma primário se exige, onde enquanto uma família de seis pessoas vive com quatrocentos cruzeiros por hora no ranço da miséria, um vereador de qualquer cidadela recebe quinze mil, ou até mais. No alto ou no baixo da escala social, os fracassos humanos se evidenciam quando a magnitude de um ideal é mal compreendida por aqueles em quem confiamos. Nós mesmos, pessoalmente, já passamos por esta prova, da qual em nosso íntimo ficou gravado: “Confia somente em ti, antes de pensar, querer e fazer”. A deslealdade de um grupo pode destruir o mais nobre dos ideais.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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