O VELHO E O MATUNGO

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, escritas entre 1977 e 1990. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.343, de 05 a 18 de março de 1984.




O VELHO E O MATUNGO

NELSON LORENA



Contaram-nos, certa ocasião, que um tal de Seu Afonso possuía várias cabeças de gado leiteiro  que ocupavam um pasto arrendado, a uma légua da cidade. Morava numa casa existente no terreno, com a esposa e seu fiel amigo vira-latas, um cão mestiço, de pai de uma raça e mãe, de outra. Geralmente feios e, por isso mesmo, expulsos de casa, são eles inteligentes, sabem se defender e disputar a vida, de maneira melhor que os cães criados domesticamente. Alguns são recolhidos por artistas de circo, que os ensinam a andar de pé, jogar bolas, saltar obstáculos, etc.. Tivemos ocasião de ver num circo que aqui esteve, um que calculava e respondia por latidos, as adições propostas pela assistência e, também, trazia entre os dentes as bandeiras de vários países, conforme lhe pediam.

O vira-latas do Seu Afonso, assim ficamos sabendo, gozava da amizade do dono. Ia todas as madrugadas ao pasto, na hora certa arrebanhava as rezes, trazia-as ao mangueiro, fechava as porteiras, fizesse frio ou calor, chuva ou qualquer tempo adverso. Era considerado o melhor amigo do dono. Um lamentável incidente veio dar um paradeiro em tão útil vida. Seu Afonso freqüentava as sessões da Maçonaria na cidade e, montado em seu alazão, para lá se dirigia. Sua mulher, na sua ausência recebia a visita do vizinho, dono do pasto arrendado, tido e havido como, talvez, o melhor amigo do marido. Se romance ou não, a maldade levou alguém a dizer ao Seu Afonso: “Tua mulher está te traindo com o teu melhor amigo”. “Tu juras o que estás me revelando?”, perguntou-lhe Seu Afonso. “Juro-te à Fé de Deus”, afirmou o delator.

Pois, creiam ou não, o português armou-se, foi ao mangueiro onde estava de vigia o seu melhor amigo, o vira-latas, e matou-o!  Num episódio tragicômico, findou-se uma vida inocente! Alguns portugueses possuem excentricidades mesmo, de pasmar. Hospedamos em nossa casa um amigo, recém chegado de Portugal. Nas vésperas de sua partida telefonou para o aeroporto perguntando: “Vossa Senhoria sabe a hora da partida do primeiro avião para o Brasil, domingo?” A resposta veio rápida: “Sei, sim senhor”, e desligaram o telefone. Voltando ao lar do Seu Afonso, onde a infâmia de uma calúnia lançara o desespero, encontramos seu filho já casado que retorna ao lar, sabedor que foi do incidente, assume a responsabilidade de ajuntamento das rezes, da ordenha e da distribuição do leite.

Vinte e cinco anos se passaram. A casa encheu-se de netos e alguns bisnetos. Envelheceram, Seu Afonso e o alazão, este agora um matungo imprestável, inútil e já quase no “bico do corvo”.

Como acontece geralmente aos velhos, em sua condição secundária, inadaptado aos hábitos licenciosos do mundo moderno, tornara-se um “quadrado”, arcaico, ultrapassado, desprezado, sem direito a alguma opinião, marginalizado para sempre, assistindo a penetrabilidade do pudor pela indignidade que macula, quando não anula, o caráter. Olha o seu Matungo, relembra como o cavalgava nas idas à cidade, nas voltas pelo pasto, e lamenta-o sem forças, nem ao menos para afugentar as moscas e insetos importunos que o fustigam... Guardadas as devidas distâncias quanto à inteligência, há certos fatos na vida do homem e dos animais que se assemelham. Não podemos penetrar nos sentimentos deles, mas os nossos sentimentos bem o sabem quando num silêncio indisfarçável vemos a censura por um café derramado pelas nossas mãos trêmulas ou quando nossos passos vacilantes derrubam uma cadeira...

O Matungo e o Velho se confundem no final. Lutaram sofreram construíram e, por fim, a solidão e o abandono foram o seu salário.


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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