QUE SOMOS, HOMINAIS OU ANIMAIS?

  LITERATURA DE NELSON LORENA
Patrono Eternal da Cadeira Nº.13 da Academia Valeparaibana de Letras.




O acervo literário de Nelson Lorena compreende cerca de quatrocentas crônicas sobre história, ciências, crítica, política, filosofia, religião e temas do cotidiano, escritas entre 1977 e 1990. A matéria de hoje foi publicada no Jornal “O Cachoeirense” Ano VII, edição nº.333, de 19 a 31 de dezembro de 1983.




QUE SOMOS, HOMINAIS OU ANIMAIS?

NELSON LORENA



As estórias se repetem, embora o sejam, com personagens diferentes. A que vamos contar é uma delas, que está se repetindo. A posição social em que nos achamos impõe-nos uma conduta, por vezes, aparente. Para mantermos o equilíbrio na vida de relações, a insinceridade, a hipocrisia mesmo, na maior parte das vezes é uma constante. Essa atitude se observa, de ordinário, quando fatores imprevistos surgem e descobrem a face oculta da verdadeira personalidade. Houve um crime de morte. Descoberto, o autor foi intimado a comparecer na delegacia para prestar depoimento. Havia matado com um tiro um colega de serviço, que se tornara amigo da casa. No interrogatório, declarou às perguntas feitas, mais ou menos assim: “Seu dotô, desde que conheci a vítima, até no serviço fazia tudo pra me prejudicá, eu notava mas, suportava. Um dia, entrei em casa, encontrei ele abraçado com minha mulher no sofá: Amarrei a cara pra ele; e isso, só pra me prejudicá. Dias depois, de volta do serão, cheguei e vi ele saindo do quarto dela: Fiquei roxo de raiva, ele notou, fez um arzinho de riso, e nem deu bola. No serviço, noto algumas indiretas e caçoadas de mau gosto. “Você tá morto, não sente nada!” “Você tá cego, não vê nada!”, diziam os companheiros. Uma noite, ele foi no forró com ela, só pra me prejudicá, dotô. Depois, de volta de viagem, de madrugada, bati na porta da rua e corri pra porta do quintal; o homem saiu correndo: Isso tudo, pra me prejudicá. Então, resolvi dá um sustinho nele: Peguei um desses revorvinho de brinquedo, uma coisinha à toa, desses que as crianças ganham de Papai Noel, e dei um tirinho nele, um tirinho bobo, fez um furinho só. Pois, o sinhô acredita que o homem, só pra me prejudicá, morreu?...”
Agora, a opinião pública está acompanhando, com interesse, o doloroso caso do assassinato de um adolescente em S.Paulo, que vendia santinhos para ajudar os pais, talvez algum flagelado daquela região onde se morre mais de fome do que de indigestão. Fascinado por uma correntinha que adornava o colo de alguma garota, roubou-a, saindo em correria, dando de cara com um “defensor da lei” que, habituado àquelas cenas, segura-o, dá-lhe uma chave de braço e, delicadamente, pisa-lhe a coluna ou a bunda, segundo o depoimento, pisoteia-o, segundo os jornais e, talvez, provoca-lhe a fratura dos três primeiros seguimentos da medula e, consequentemente, a morte imediata. Assim como os fatores imprevistos denunciam os aspectos negativos de nossa personalidade, a ausência dos estímulos motores e sensitivos ocasionada pela fratura da medula, determinou a morte da criança. Parodiando o depoimento do operário assassino, dirá o “defensor da lei” no seu depoimento: “Esses trombadinhas, doutor, criam casos “só pra nos prejudicar”. Peguei-o pela camisa, torci-lhe o braço, pisei levemente na sua bunda, com a delicadeza que nos é peculiar ao lidar com o público, e o rapazinho, “só pra me prejudicar”, morreu!”


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Ao professor e jornalista, José Maurício do Prado, ex-diretor proprietário do jornal “O Cachoeirense”, os nossos agradecimentos pelo acesso aos originais.


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